Geração de dados como ciência cidadã // Uma agenda favelada pela abertura da ciência
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Geração de dados como ciência cidadã // Uma agenda favelada pela abertura da ciência

Gilberto Vieira [1]

photo credit: Eloi Leones

Nos últimos anos tenho me deparado com um debate instigante que, às vezes, a depender de onde é feito, nos pergunta: a quem pertence a ciência? Esta parece ser uma questão fundamental para entendermos os caminhos que as democracias vão tomar nas próximas décadas, principalmente enquanto os países do sul global reivindicam maior protagonismo no futuro geopolítico do mundo. É que ciência e política devem ser pensadas em conjunto. Se acreditamos na centralidade das periferias para a construção de sociedades de direito pleno, então é preciso questionar também onde estão as periferias (territoriais, sensoriais, socioeconômicas, do pensamento) [2] na construção da ciência do futuro e seus pertencimentos. 

“O nível de desenvolvimento científico de um campo, país ou região não é medido simplesmente por publicações indexadas em bancos de dados científicos convencionais e pelo impacto de suas citações. É igualmente importante avaliar os resultados do trabalho de pesquisas locais e regionais para compreender as configurações da ciência e sua importância em cada contexto.” É o que dizem as pesquisadoras Dirce Santini e Sônia Caregnato [3]. Elas alegam que as periferias (entendidas em sua dimensão mais ampliada) têm seus próprios sistemas de geração e uso de conhecimento e avaliação, o que pode exigir diferentes tipos de indicadores. A simples transposição de epistemologias da “ciência principal” para os espaços periféricos tende a gerar análises inadequadas e efeitos nocivos à própria ideia de ciência. 

Não é de hoje que o data_labe tem pautado o conceito de geração cidadã de dados em alguns debates dedicados à intersecção entre tecnologia e transformação social. Os dados estão em disputa no contexto das grandes cidades, especialmente as nossas, latino-americanas, africanas. É por isso que temos realizado projetos que envolvem participação popular na produção de dados, como o Cocôzap, que mapeia denúncias de problemas sanitários no Conjunto de Favelas da Maré, aqui no Rio de Janeiro. De forma simplificada, o objetivo dos protótipos que viemos experimentando é popularizar o debate sobre a produção e difusão de dados sobre nossas realidades faveladas. 

Quem entende como os jogos políticos funcionam sabe que as decisões estão quase sempre respaldadas por pesquisas, relatórios analíticos e conjunturais, números que justificam intervenções aqui ou acolá. É claro que não é preciso ser expert pra saber também que inúmeras decisões políticas são tomadas por puro capricho ou imposições demagógicas. Mas não estou aqui interessado no debate sobre o modelo político que tem desafiado nossas democracias. O que tem chamado nossa atenção é esta etapa importante e pouco discutida que é a da formulação das metodologias de pesquisa, dos modelos matemáticos e estatísticos que permitem chegar num ou noutro resultado, nos relatórios narrativos que contam histórias entrelinhas, na composição das equipes e instrumentos de pesquisa. Aí nos perguntamos mais uma vez: a quem pertence a ciência? 

Como parte do Global Innovation Gathering – o GIG – estive na edição do festival Re:publica deste ano de 2022 e me dediquei a discutir como podemos contribuir para a abertura das ciências de dados e das ciências sociais, especialmente nestes processos que envolvem dados públicos e que desembocam nas decisões políticas sobre nossas vidas cotidianas. As favelas e periferias globais, que são o centro do trabalho do data_labe, estiveram excluídas dos processos científicos da era moderna. Nem sempre foi assim. Já é sabido que impérios, comunidades e etnias espalhadas pelos territórios ameríndios e africanos desenvolveram métodos de análise e interpretação dos astros, da natureza, do comportamento humano e da produção tecnológica que garantiram sua manutenção no planeta por muitos séculos. A chegada da ideia de ciência ocidental que veio colada às armas de fogo e doenças que dizimaram e escravizaram essas populações é que minou nossa possibilidade de seguir construindo interpretações sobre o mundo. É claro que resistimos, mas não podemos deixar de perguntar: o que é a ciência que conhecemos hoje? Do que ela é feita? Quem participa de seus processos de decisão?

As respostas vão ficando mais evidentes na medida em que florescem mais pessoas, projetos e programas advindos especialmente dos movimentos sociais localizados nos territórios populares. Temos empreendido e participado de várias iniciativas recentes que buscam não apenas valorizar saberes locais, mas também mobilizar a própria lógica da pesquisa usualmente feita em centros de pesquisa e nas universidades, produzindo um deslocamento das instâncias autorizadas historicamente para a produção de conhecimento. Durante a pandemia da COVID-19, por exemplo, muitos coletivos se organizaram no apoio material a famílias em situações de vulnerabilidade, mas também na coleta de dados que evidenciam as desigualdades estruturais da nossa sociedade (falei especialmente disso aqui). 

Nos últimos meses temos trabalhado aqui no data_labe na organização e análise de informações geradas durante uma campanha para coleta cidadã de dados sobre abordagem policial no Brasil. Escutamos mais de mil pessoas que acessam nossos conteúdos e fazem parte da nossa rede para revelar que existem “dois protocolos” para buscas pessoais: um para negros e outro para brancos. As chances de uma pessoa negra ser abordada pela polícia nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo é 4 vezes maior que uma pessoa branca. 

Chamamos de ciência cidadã este modelo de abertura e dinâmica das formas de pensar a pesquisa e a produção de dados. Esse é um experimento para retomar um debate que pareceu perdido (ou enfraquecido) nas universidades e centros de pesquisa nas últimas décadas. A chegada de negras e negros nos laboratórios, o crescimento dos debates sobre decolonialidade do pensamento e da ação, o acesso aos modelos burocráticos para manutenção de organizações sociais são fatores que chamam minha atenção numa revoada que promete não recuar diante do avanço do neofascismo. Se sempre estivemos no front das lutas por direitos civis, humanos e ambientais, então agora estaremos também na luta por uma ciência mais aberta, diversa, participativa e cidadã. 

[1] Gilberto é diretor e co-fundador do data_labe, um laboratório de pesquisa, tecnologias, educação e jornalismo que fica no Conjunto de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro.

[2] Manifesto Jararaca. Disponível em jararacalab.org.br

[3] SANTIN, Dirce Maria; CAREGNATO, Sônia Elisa. The binomial center-periphery and the evaluation of science based on indicators. Investigación bibliotecológica; México, 2019. Disponível aqui.